Há algum tempo li este artigo do Roberto Pompeu de Toledo (não sei precisar a data) sobre a forma como damos nomes às coisas do dia-a-dia. Desde uma simples mesa até o nome de doenças. Ele faz uma reflexão muito original e crítica de como a sociedade vem nominando "mal". Muito interessante e vale gastar um tempinho lendo. Segue o texto:
" A SECRETÁRIA ELETRÔNICA E O NOME DAS COISAS.
Roberto Pompeu de Toledo
O ser humano já não exibe o mesmo talento na arte de apelidar os objetos e fenômenos à sua volta.
Existe melhor nome para o objeto que chamamos de mesa, do que a palavra “mesa”? E a palavra “chapéu”, existe melhor para designar um chapéu? A palavra “mesa” estende-se à nossa frente como guarnida de finos pratos e do melhor vinho, generosa e convidativa. A palavra “chapéu” como protege a cabeça, de tão justa e amiga. São nomes que convêm ao objeto como luva às mãos – e diga-se de passagem “luva” e “mão” são também, na humildade de suas sílabas, palavras da melhor qualidade. E os nomes dos bichos? Borboleta, beija-flor, chimpanzé, girafa, coruja, zebra, elefante, leão, rato, leopardo, onça, tartaruga. Esplêndidos. Jóias de expressão e significado.
O escritor francês Jules Renard escreveu , a propósito das vacas: “Nós as chamamos de vacas, e é o nome que melhor lhes cabe”. Claro que escreveu em francês, língua em que vaca e “vache”, mas vaca é nome tão adequado ao quer dizer quanto “vache”. De maneira geral, os nomes das coisas essenciais e primitivas estão bem resolvidos, não importa em que língua. Em todas, “mesa” em designação digna. Alguns nomes, de tão bons, servem a várias línguas, com pequenas modificações, como “girafa” e “elefante”. Isso prova que o homem se saiu bem na tarefa de que o encarregou o criador, segundo a Bíblia: Iahweh Deus modelou então, do solo, todas as feras selvagens e todas as aves do céu e as conduziu ao homem para ver como ele as chamaria: cada qual devia levar o nome que o homem lhe desse. O homem deu nomes a todos os animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens...” (Gênese, 2, 19-20).
E Hoje? A capacidade de dar nome às coisas revela-se em crise. A última, ou, se não a ultima, pelo menos a mais apavorante das doenças surgidas nos últimos anos, deu-se o nome de “aids”, uma mera sigla. Em outros tempos, as doenças mereceram nomes como “rubéola” (que até empresta alguma graça aos rubores a que se refere) ou “escorbuto” (assustadora como os piratas que costumavam contraí-las). Os índios, como seu fraco pelo barulho das vogais nos legaram o lindo nome de “catapora”. “Aids” além de ser sigla, leva outra característica de nosso tempo, o cientificismo, com sua referência à imunodeficiência adquirida. No caso brasileiro, como nota o jornalista Marcos de Castro, num livro douto, interessante e útil, de lançamento recente (A Imprensa e o Caos na Ortografia, Editora Record), há a agravante de, incuráveis americanófilos, termos adotado a sigla em inglês. Ao contrário, franceses e espanhóis conformaram-na à ordem das palavras em seus idiomas (síndrome da imunodeficiência adquirida) e obtiveram resultado muito mais afeito à índole latina – “sida”. Também os portugueses falam “sida”, não “aids”.
Em matéria de novas invenções, que é onde mais tem exigido o talento de dar nomes às coisas, há falhas que advêm da própria incompreensão do objeto nomeado. “Computador” foi assim chamado porque a primeira utilidade que se vislumbrou no novo aparelho foi a de computar. Mas ele faz muito mais – compõe textos, arquiva, comunica. O objeto extravasou a designação com se tentou aprisioná-lo. Nada supera, no entanto, em incompetência, na área de nomear, os nomes que se deram, no Brasil, a duas outras invenções recentes – “aparelho de som” e “secretária eletrônica”.
“Vitrola” já era ruim. Era o nome de um produto lançado pela empresa Victor. Não tinha a nobreza de “gramofone” ou “fonógrafo”, nomes que, compostos de elementos de línguas antigas, resultaram, a exemplo de “automóvel” ou “televisão”, em vocábulos mais que aceitáveis. Mas “vitrola” pelo menos era original e sintético. “Aparelho de som” é um descalabro. Aparelho de produzir som é qualquer instrumento musical, e nem precisa ser isso – é qualquer lata ou pedaço de pau. Mas o pior é que, por ser nome composto e comprido, deu lugar à abreviação “som”. “Não vamos esquecer de levar o som à praia”, diz a namorada ao namorado, como se esse elemento incorpóreo que é o som, o som puro, vibração que viaja no ar, pudesse ser transformado de uma parte a outra por mãos humanas. “Não ponha o som em cima da cama”, diz a mãe ao filho, e isso, bem pesadas as palavras, é tão esdrúxulo como se dissesse: “Tire o vento de cima do travesseiro” ou “Guarde a claridade no armário”.
Pior ainda é “secretária eletrônica”. Supõe uma mulherzinha movida a pilha. Os irmãos portugueses, que nesse assunto de nomear são mais sensatos, dão a esse aparelho o nome de “gravador de chamadas”. Os portugueses também não cederam ao despropósito de chamar de “mídia” os meios de comunicação, termo pelo qual, grotescamente, o latim nos chega embrulhado de inglês. Ficaram com “média”, do latim original. Secretária eletrônica é um duplo insulto – ás secretárias e ao aparelho que pretende designar. Às secretárias porque as equipara a uma engenhoca acoplada ao telefone. Ao aparelho, pelo desprestígio resultante de nome carregado de ridículo. O apelido que lhe foi pespegado no Brasil condenou à indignidade o gravador de chamadas."
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